Cinquenta tons de sorofobia: quando o assunto é relacionamento abusivo com soropositivos

Arte de Leonilson, morto em 1993 em decorrência do vírus.

O mundo está mudado.

Termos como “prep”, “pep”, “indetectável”, “ist”, “casais sorodiferentes” estão cada vez mais em voga. A sexualidade tem sido cada vez mais experimentada, sem medo, no bareback.

O mundo está mudado, mas continua o mesmo. Parece que nós só ouvimos estes termos, sem entendê-los.

Outro termo importante é a sorofobia, que é todo e qualquer preconceito atribuído a pessoas soropositivas, seja intencionalmente ou não. Debater a sorofobia é como secar o gelo da camada polar do planeta, dia após dia. Infelizmente, a nossa escuta não está acompanhando essa explosão de terminologias. Não há uma reflexão mais empenhada, mais aprofundada do que seja exatamente ser sorofóbico.

Neste breve artigo, darei as nuances do que a sorofobia me faz experimentar em termos da minha própria experiência pessoal. A sorofobia é coisa nossa e não só me atinge como atinge uma parcela considerável da população. O hiv é tema nosso. Quando um homossexual é impedido de doar sangue, isto ocorre por conta da sorofobia. Quando uma mulher, preferencialmente as mulheres negras, é desassistida pelo SUS, isso ocorre por conta da sorofobia. Quando as pessoas a sua volta ficam escadalizadas com a vida sexual da mulher ao seu lado e comentam que “fulana é promíscua ou transa com vários”, isso tem relação íntima, não só com a machismo, mas também com a sorofobia. A sorofobia é prima-irmã da homofobia, do machismo, da hipervalorização do macho irretocável e inconseqüente.

1. Sorofobia mais latente: uso de expressões como aidético, soropositivo com o intuito de ofender pessoas, propositalmente.

Nos anos oitenta, os gays usavam o termo “fulano é doce”. Nada mudou muito, exceto pela instrumentação que hoje temos em usar termos mais explícitos para ofender. Ainda hoje se fala na surdina sobre o amigo soropositivo do lado. Estes termos são usados para ofender, justamente porque incluem uma carga de ofensa associada à vida sexual da pessoa, a quantidade de parceiros, ao prazer sexual. O fato piora quando se trata de uma mulher ou um homossexual passivo. A liberação dos corpos parece incomodar os mais puristas. Já ouvi, entre os amigos gays e grupos tóxicos da internet, falas como “aquele passivo é desesperado demais”, “fulano deve estar cheio de dst (sic)”, como analogia para “aquela mulher é saidinha demais” ou “ela transa com muitos caras”. O sexo, deixando de ser algo saudável, se torna discurso moralista. Neste caso, a sorofobia encontra o machismo e não há como agradecer ao fato de ser soropositivo, por estar cada dia mais consciente da necessidade do feminismo e do autocuidado. Temos cada vez mais instrumentos de oprimir estando em grupos que deveriam se ajudar.

Um caso recente que revela esse apelo à espetacularização da vida sexual alheia é o que aconteceu com o deputado federal Alexandre Frota. Não insiro aqui qualquer comentário de apoio ao deputado ou ao governo bolsonarista. Meu foco é, estritamente, o que os apoiadores de Bolsonaro, tendo visto o presidente ser alvejado em críticas pelo deputado, falaram. Há uma chuva de comentários em que o deputado é chamado, gratuitamente, de soropositivo. Provavelmente pelo seu passado como ator pornô. Isso é, além de um caso claro de moralismo da direita brasileira, um caso de sorofobia séria.

2. A sorofobia velada do indivíduo que faz uma anamnese aceita, e criminaliza o parceiro.

Quantas vezes não me senti violado, ao marcar encontros em aplicativos de relacionamento e perceber que aquele “date” tinha se transformado em um anamnese comigo? O que era pra ser um encontro com alguém legal, se tornava um encontro com o vírus. A espetacularização do hiv é mais importante que qualquer empatia.

Além disso, também há as falas de “devíamos nos cuidar mais”, “por que você não usou camisinha?”, “você se cuida?”, como se todo e qualquer cuidado tivesse que ser encerrado em uma das pessoas. Apenas ratificando: soropositivos disciplinados tem uma rotina de autocuidado muito mais rígida que soronegativos que dizem que cuidam de si. A responsabilidade é de ambas as partes e, pressionar seu parceiro para que ele se cuide, parece ser mais um caso de sorofobia velada que de preocupação sincera.

Sabemos que, se não intencionalmente, transmitir o vírus não é crime e está previsto em lei que assim o seja:

“Art. 131. Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio: Pena — reclusão, de um a quatro anos, e multa.”

Além disso, é necessário oferecer assistência a pessoas que transmitam o vírus intencionalmente, pois, se elas são um perigo para uma sociedade eufórica, muito mais são para elas mesmas. Certamente, boa parte destas pessoas não aprenderam a conviver com o próprio vírus e estão sofrendo em processos psíquicos mais complexos do que simplesmente o “mal caratismo”.

Também, não é redundante lembrar que, se a sorofobia incomoda na prática, também é crime pela LEI Nº 12.984, DE 2 DE JUNHO DE 2014,

Art. 1º Constitui crime punível com reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, as seguintes condutas discriminatórias contra o portador do HIV e o doente de aids, em razão da sua condição de portador ou de doente:

I — recusar, procrastinar, cancelar ou segregar a inscrição ou impedir que permaneça como aluno em creche ou estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado;
II — negar emprego ou trabalho;
III — exonerar ou demitir de seu cargo ou emprego;
IV — segregar no ambiente de trabalho ou escolar;
V — divulgar a condição do portador do HIV ou de doente de aids, com intuito de ofender-lhe a dignidade;
VI — recusar ou retardar atendimento de saúde.

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 2 de junho de 2014; 193º da Independência e 126º da República.

Ainda, por esse prisma, a recente propaganda do Ministério da Saúde sobre as ists é extremamente mais preocupante. A propaganda revela, não só o estigma das ists, como um estigma com o corpo alheio e, convenhamos, quem nunca pegou uma gripe sequer? Não é possível que a mesma geração que quer ser body positive, ser inclusiva com tantos outros corpos — gordos, negros, magros, trans — continua a ser excludente com corpos considerados ameaça. Já vi muitos discursos sorofóbicos vindo de pessoas consideradas militantes de outras causas.

No dia que as ists forem vistas como doenças de compartilhamento mútuo, de cuidado inclusivo e não excludente ao corpo dos “portadores” destas doenças, estaremos caminhando para uma medicina e uma política pública de aids e ists melhor.

3. O cara que espera o relacionamento terminar para jogar tudo na sua cara.

Outro caso, menos visibilizado, é quando, em relacionamentos sorodiscordantes, o sujeito soronegativo não só silencia a experiência do soropositivo, como faz parecer que a condição do parceiro é um troféu. Pessoas soronegativas se utilizam da posição de “não tenho preconceito com o HIV” para semear ali todo o tipo de discurso de opressão. Eu mesmo, ao terminar com um ex, ouvi ele gritando ao telefone que “ninguém iria me querer assim”. Assim, pronome indefinido, indicava minha sorologia.

Este é o caso mais grave e menos visibilizado. É como se todo o valor da relação estivesse na aceitação do vírus. Como se alguém que falasse: “veja como eu sou foda e aceito o hiv e entendo a dinâmica disso tudo.”

Errado. Entender o hiv deveria ser mérito pessoal e intransferível. O hiv é um vírus de todos nós. Como Susan Sontag diria em “A doença como metáfora”, toda a relação, em última análise, homossexual. Todos os corpos estão em perpétuo contato.

4. O soronegativo biscoiteiro se preocupa com a auto-imagem.

Outro caso é o do sujeito que faz parecer que a sua auto-imagem como soronegativo sem preconceitos é mais importante que relação. Isso me ocorreu quando relatei, através de um poema, uma sucessão de falas que ouvi por aí e que me doeram até para escrever. Essas falas, definitivamente, não vinham dele, mas no momento que ele associava tudo ao hiv a sua própria imagem de “parceiro de soropositivo”, isso era um caso de sorofobia velada. Parecia que tudo girava em torno da máxima do “eu não tenho preconceito, o que vão achar de mim se você desabafar sobre?”. Isso é de uma injustiça absurda já que, mesmo sabendo de todos os preconceitos, tudo parecia estar associado à sua própria imagem da internet. Ora, se eu me assumi soropositivo publicamente, isso também foi e é extremamente doloroso e envolve um processo de reconhecer a minha estória. Não foi ele quem ouviu todas aquelas frases e saiu de um date pior do que foi. Essa pessoa simplesmente não consegue sequer sair da sua própria vontade de parecer “o cara legal”. Apesar do tanto que conseguiram descontruir os tabus, é preciso mais empatia por parte destes soronegativos. Pois eles simplesmente ignoram que o hiv não é necessariamente um problema só deles, mas de todos nós, soropositivos ou não. Desconstruir o vírus juntos seria mais honesto.

5. O soronegativo que, usando prep, acha que é da sua responsabilidade se eximir de qualquer cuidado.

Quantas vezes não ouvi, no primeiro encontro: “mas se uso prep, porque não podemos fazer sem camisinha?”, “você não transmite, pô, podemos fazer sem camisinha?”; “estou usando prep e me cuidando pra não pegar”;

Minha vontade é dizer em alto e bom som: “não, porque eu me cuido, porque eu sei o que é ter uma doença crônica e ter que tomar remédios para a vida toda por não ter usado camisinha”.

Apesar de nós sabermos muito bem que o prep também auxilia à redução propagação de tantas outras ists, isso não redime o fato de que deveríamos, nesse contexto que temos ainda mais tecnologia, nos cuidar ainda mais. O prep é um dos mecanismos de cuidado. Quer transar sem camisinha? Isso é responsabilidade sua. Mas do quanto a confiança no corpo do outro pode ser abalada quando recebemos a notícia de que estamos soropositivos. Esta é uma consciência, uma urgência que o soronegativo precisa aprender.

6. O perigo da expressão “grupo de risco”.

Como sabemos, o vírus hiv opera por uma cadeia de relações sem sequer se ater a um indivíduo. Não vê branco, negro, índio, judeu, ateu, queer, smooth, homem cis ou trans, mulher cis ou trans, etc. Nesse contexto, não há um grupo de risco ou uma relação individual que seja exposta. Nós somos, TODOS igualmente expostos. O comportamento do vírus é como o ciclo ininterrupto de relação a que o poeta Walt Whitman faz referência em um dos seus poemas mais famosos:

I sing the body electric,
The armies of those I love engirth me and I engirth them,
They will not let me off till I go with them, respond to them,
And discorrupt them, and charge them full with the charge of the soul.

O corpo, portanto é potência e, justamente por causa disso, nos faz pensar no tanto que o sexo é bom, mas também envolve um autocuidado permanente. Não interessa o tanto que você não conhece alguém antes de fazer sexo. No momento em que você se envolve com esta pessoa, vocês já estão em uma relação. E uma relação muito mais poderosa que memória, afeto, carinho. É um relação íntima, de corpo a corpo. Como dizia Manuel Bandeira: “deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.”.

Aqui, Bandeira não fala só não fala de uma geração pós-epidemia, como não fala de uma geração para qual o bareback virou uma prática de libertação dos corpos, muito por conta da prep.

Hoje o bareback, assim como o prep, é o novo trending topic do Twitter. Ela sempre existiu. Praticar bareback é responsabilidade de cada um e não um brinquedo novo que soronegativos que pegam na estante. O bareback tem uma estória, mais antiga que o prep e ainda mais funda que atual “ditadura da camisinha”. Todo o uso ostensivo de termos como “use camisinha” nas propagandas não quer senão apontar para a responsabilidade de cada um. Pelo contrário, aponta uma necessidade.

Incitar cidadãos a usar camisinha num imperativo de propaganda é extremamente patriarcal, mas JAMAIS aprisionou nossos corpos ou impediu pessoas de exercerem sua liberdade corporal. A quantidade de gente exercendo o bareback está aí pra mostrar. Não houve nunca ditadura em relação a isto.

Este tema do bareback, ainda tem um contexto extremamente machista, como Javier Saéz e Sejo Carrascosa comentam em “Pelo cu: política anais”

“Dentro de um regime heterocentrado e machista como o que vivemos, a masculinidade segue vinculada a valores como o risco, a força, a violência, a morte e o perigo. Todos os homens, incluindo os gays, são educados com estes valores: pelos padres, pelos meios de comunicação, pelos jogos, pelo cinema e pela televisão. Em alguns fóruns de bareback na internet encontramos esse tipo de expressões: ‘se é um homem de verdade, você faz sexo autêntico, sexo cru’, vinculadas ao sexo sem preservativo.”

Sigo falando a uma população masculina que, não só não cuida de seu corpo, como age como um adolescente diante de um brinquedo novo ao exercitar sua sexualidade. Sexo é bom? É. Nossos corpos tem mais liberdade. Nossas vidas, menos pudores. Não, isso não deveria ser uma Canção do Exílio. O que eu mais observo é um exílio de responsabilidade em relação ao próprio corpo. E esse exílio, apesar de eu falar com especial preocupação na população gay, não escolhe “grupos de risco”, uma vez que todos nós, temos nos isentado e esquecido nossa estória com o vírus.

O que precisamos é, de fato, de um idílio de afeto, de carinho, de relações de confiança. Se o corpo confia é porque há algo anterior que nos faz confiar. Por isso, e digo isso sem qualquer tom moralizante, há tantos sujeitos hoje que desejam nada mais do que seja outro corpo pra transar. Isso é libertador, mas também aprisiona. E nos aprisiona numa liberdade relativa, visto a quantidade de pessoas que vejo por aí aprisionadas tão aprisionadas no vício do sexo, no vício do álcool, das drogas, dos relacionamentos sucessivos. Se Allen Ginsberg, na década de sessenta, viu “as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura, famintos histéricos nus”.

Expus aqui um pouco da minha experiência para que cada de vocês, soropositivos ou não, possam repensar que a sua própria liberdade política, ética e sexual precisam andar lado a lado.

Digo tudo isto para apontar um caminho possível. O caminho do hiv é também o caminho da empatia, do auto-cuidado, da consciência do nosso machismo diário e não mera massagem de ego em quem aceitou o soropositivo. O hiv deveria ser certeza de cuidado e não repulsa, nojo, rejeição.

***

Escrevo todos esses cinqüenta tons de homofobia, públicos e privados, porque sou um corpo que sofri e sofro todos estes casos, na televisão, no metrô, nas redes sociais, nos aplicativos e nos meus relacionamentos passados.

Espero se cuidem, se previnam, com consciência e tesão. Pisou na bola? A gente tem tecnologia pra isso. Tem medo do hiv? Chega aí, conta. A geração que está mais tentando mudar o mundo é que a mais faz prevalecer o preconceito. Ainda não somos suficientemente maduros de entender o corpo do outro sem estigmatizá-lo de alguma forma. Façamos como Whitman e respeitemos a dignidade deles. Só assim, nossos corpos poderão, finalmente se entender, sem precisar de exílios.

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