HIV: a outra pandemia durante a Covid-19

Em 2020, a atenção do mundo se concentrou na pandemia da Covid-19. A prioridade absoluta dada ao novo coronavírus pela maioria das autoridades sanitárias dos países impactou a estrutura de cuidado e prevenção que sustenta a resposta ao HIV/aids, pela dificuldade de acesso ao sistema de saúde. A interrupção em qualquer uma das etapas no cuidado contínuo do HIV, como se sabe, impacta negativamente no controle da infecção e nos avanços que foram conquistados ao longo das últimas quatro décadas, ao custo do árduo trabalho de cientistas e profissionais de saúde.

Durante a pandemia, a testagem fora das unidades de saúde foi suspensa e dentro delas diminuiu. Com isso, o número de pessoas que iniciaram a terapia antirretroviral também caiu. De janeiro a maio de 2020, o Ministério da Saúde registrou queda de 17% na testagem em comparação com o mesmo período do ano anterior. Um estudo ainda não publicado do programa global da AHF, feito em 43 países de quatro continentes, revelou que o número de testes realizados entre janeiro e agosto deste ano teve uma redução de 35,4% no comparativo com o mesmo período do ano passado. A falta ou atraso na testagem significa que as pessoas que testaram positivo e que deveriam iniciar o tratamento não o fizeram. Consequentemente, terão progressão menos favorável de sobrevida, aumentando a transmissão do HIV e sua incidência.

Também as restrições de mobilidade na época mais rigorosa da quarentena levaram pessoas que vivem com HIV a interromperem o tratamento. Um estudo recente do Imperial College de Londres mostra que todo esse cenário pode elevar em 10% a mortalidade por HIV/aids nos próximos cinco anos em países de renda baixa e média, incluindo o Brasil. Além disso, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) estima que até 293 mil novas infecções pelo HIV e 148 mil novas mortes por aids poderão ocorrer em todo o mundo até 2025.

Os impactos também passam pela redução na distribuição de preservativos, na realização de exames de carga viral para monitoramento das pessoas em tratamento e na disponibilidade de diagnóstico e medicamentos para outras IST e comorbidades associadas ao HIV, como a tuberculose, cuja descontinuidade no diagnóstico e no tratamento pode levar ao aumento da mortalidade de pessoas que vivem com HIV/aids – que já é elevada na coinfecção.

Além de todas essas barreiras para um diagnóstico oportuno, vinculação e adesão ao tratamento, um dos principais problemas em relação ao HIV/aids é a discriminação e o estigma. Lamentavelmente, a atual política de prevenção do Brasil está ancorada em uma política estatal com agenda de valores que fala contra a população LGBTQIA+, profissionais do sexo e pessoas que usam drogas. Com raras e bravas exceções, não há, atualmente, política pública para essas populações, o que dificulta o acesso oportuno aos serviços de saúde, às ferramentas de prevenção e ao tratamento adequado e de qualidade.

Nesse contexto, a pandemia de Covid-19 não deve ser usada como desculpa para diminuir o ritmo da resposta global ao HIV. Continua sendo fundamental garantir o acesso aos serviços de prevenção, testagem e tratamento. Até porque ainda há muito a ser conhecido sobre o novo coronavírus, e os desdobramentos dele para outras doenças ainda são muito imprevisíveis. A crise atual deve ser usada como um momento para se tirar lições do trabalho que vem sendo desenvolvido. É hora de reconstruir o programa de enfrentamento do HIV e transformar as dificuldades em oportunidades.

Para isso, são necessárias, urgentemente, soluções que mantenham ou aumentem o acesso das populações-chave aos serviços de HIV, minimizando a exposição potencial à Covid-19 e promovendo a segurança dos indivíduos. Elas devem apoiar o distanciamento físico e o descongestionamento das unidades de saúde, mas de maneira a responder às realidades atuais das populações mais vulneráveis.

Mecanismos que ampliem a testagem e o cuidado com as pessoas que vivem com HIV também precisam ser priorizados. O Brasil é um dos poucos países que têm o autoteste incorporado no seu sistema de saúde. É preciso estimular a distribuição para o uso nas populações-chave, cobrindo a lacuna das unidades de saúde que, por motivos diversos, não estão fazendo a testagem como deveriam.

Além disso, a telemedicina – aprovada somente agora, por conta da pandemia – é uma ferramenta importante para que os tratamentos do HIV e de outras IST não sejam interrompidos. A prática foi adotada pela Clínica do Homem, a primeira da AHF Brasil, localizada no Recife, que se manteve aberta mesmo durante o pico da Covid-19. O país precisa modernizar seu sistema de saúde e oferecer consultas virtuais, avançar na entrega da medicação em domicílio e estender a validade da prescrição de medicamentos contra o HIV. São exemplos de ações de prevenção e acolhimento que deveriam permanecer no período pós-pandemia.

Outro aprendizado inestimável durante a crise sanitária foi o impulsionamento de ações solidárias de organizações da sociedade civil, fundamentais no apoio a populações em extrema vulnerabilidade. Desde o início da pandemia, a AHF investiu mais de R$ 3 milhões em projetos de ONGs de 17 estados brasileiros para distribuição de cestas básicas de alimentos e itens de higiene a pessoas que vivem com HIV/aids, usuários de drogas, população de rua e LGBTQIA+. Em todo o mundo, houve distribuição de doações em mais de 325 locais.

Importante mencionar, ainda, que a AHF Brasil estabeleceu como prioridade em seu plano de advocacy para a Covid-19 o apoio ao Projeto de Lei 1462, que propõe evitar o monopólio dos grandes laboratórios, garantindo vacina, medicamentos e outros insumos para todos em épocas de emergências de saúde pública. A matéria tramita na Câmara dos Deputados e ainda não foi posta em votação.

Essas iniciativas nos remetem ao início da epidemia do HIV/aids, na década de 1980, quando uma resposta significativa e multissetorial, com o envolvimento ativo de ONGs e academia levou o Estado a montar um programa de resposta ao HIV/aids que, durante anos, foi considerando uma experiência exitosa.

Hoje, com o recrudescimento da Covid-19 no Brasil e em outros países e as incertezas em torno da vacina, ainda assistimos, atônitos, ao achincalhe da ciência e à sinalização, por parte do governo federal, de um possível corte de R$ 35 bilhões do orçamento para a Saúde para 2021.

É hora, portanto, de lembrar o óbvio aos governantes de ocasião: que eles são passageiros, mas os direitos de saúde pública de qualidade e políticas de assistência para populações vulneráveis, inscritos na Constituição Federal de 1988, são perenes.

* Adele Benzaken, Diretora do Programa Médico Global da AHF, e Beto de Jesus, Diretor da AHF Brasil.

Fonte: Agência Aids

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